sexta-feira, 31 de maio de 2019

AS AMANTES NO PERÍODO DA EXTRAÇÃO DO LÁTEX NA AMAZÔNIA


AS AMANTES NO PERÍODO DA EXTRAÇÃO DO LÁTEX NA AMAZÔNIA


Francisca de Lourdes Souza Louro
UEA, Letras (Português).
lourdeslouro@yahoo.com.br. Manaus, Amazonas
Auricléa Oliveira das Neves
Academia de Letras do Brasil – Amazonas.
auricleaneves@gmail.com. Manaus, Amazonas

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RESUMO

No romance “O amante das Amazonas”, Rogel Samuel se utiliza dos objetos de realidade motivadora para efetivar sua meditação poética. A matéria deste estudo tem, como suporte teórico, a abrangência da visão do semioticista, crítico e escritor Umberto Eco, em que se perceberá, por sua linha de pesquisa, as complexas interações que se validarão por incursões do referido teórico.  Assim sendo, algumas figuras femininas, serão escolhidas como matéria de análise para observar como o autor as desenhou em seu romance e como as efetivou na atividade de representação amazônica. O que se insinua aqui é a noção de que O amante das Amazonas é, ainda, um documento de trabalho para o escritor que passou longos dez anos a pesquisar e publicar para dar ao público, o direito de conhecer a época do látex, onde se desenvolve a narrativa. Olhar-se-á a ambivalência recorrente no texto pelas vias de acesso sob a perspectiva semiótica da palavra – amante – utilizada na capa da obra. Espera-se que este estudo atenda, não só a comunidade acadêmica que queira buscar por estudos semióticos, mas também, o público interessado nas narrativas de Rogel Samuel voltadas para a significação da mulher no período da extração da borracha na Amazônia.

Palavras- chave: semiótica; hermenêutica, romance; amante; leitor; figura feminina



INTRODUÇÃO
A arte é tudo – tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo.
(Eça de Queirós)

A prática da escrita pode alterar a memória ao colocar em evidência os conflitos existentes do passado neste presente. Pode também, colocar em dúvida verdades relatadas pela observação de um narrador vindo de fora, e lança seu olhar por sobre a sociedade e conta, por sua experiência, a vida de todos nós. Escrever é sempre pôr-se na pele de um outro, isso é mais instigante para a natureza da Literatura, o autor se esconde na máscara do outro e diz ora absurdos, ora excitações, ora hesitações, mas sempre representações. Os paradoxos internos, diante da literatura, dilui, mas também, notabiliza alguém, seja um personagem, seja o narrador, seja o autor. Aqui escolhemos notabilizar algumas mulheres que foram manipuladas sexualmente por um homem, cuja aparência é de uma fortaleza humana, o Mulo Paxiúba um Ajuricaba do avesso. O escritor deu vida a todos os personagens e consagrou alguns com dose excessiva por este copular com as mulheres que ele escolhia. Para usar? Sim, não havia amor nesse homem que é da terra, é movido pelo instinto animal. Mas, aqui neste cenário Amazônico, escolhemos apresentar três figuras femininas e duas desgraçadamente padecem nas mãos de Paxiúba.
Qualquer reflexão preambular sobre literatura e a sua existência enfrenta, de início, a questão de saber se é possível (ou até que ponto é possível) estabelecer as fronteiras que delimitam o fenômeno literário: ou, por outras palavras, indagar o que cabe e o que não cabe dentro do campo literário. Diante do que sugere a reflexão proposta neste estudo, pode-se afirmar que, Rogel Samuel, em O amante das amazonas(2005), traz a História da sociedade da época, de gente que experienciou a extração do látex, e de como os mesmos viviam nos Seringais da Amazônia. As personagens fazem parte da cultura de desenvolvimento social e financeiro da cidade que viveu as agruras da boa e da má sorte.  Por esses, a vida se redesenha em papéis trágicos e desenhar as figuras femininas é legitimar o testemunho de informação que elas dão como existência para que se possa apreciar o habitante regional da realidade ficcional.
Escolheu-se este texto, construído por quatro mãos, para dar a certeza ao leitordeque se objetivou ampliar oportunidade em conhecimentos quando se utilizou duas correntes de pensamentos, Semiótica e Hermenêutica Filosófica. Esta investigação recaisobre a escolha detrês mulheres no romance de Rogel Samuel por entender que o leitor/a, possa se reconhecer em uma determinada personagem tomada em uma determinada intriga (RICCOEUR,2006 :115). 
 Pretendeu-se demonstrar a notoriedade de cada umapersonagem na filosofia da arte literária deste tempo de caos social que os seringais enfrentaram e, institucionalmente,elas são as distintas representantes da Amazônia. Neste sentido, é possível surpreender o leitor pela dimensão histórica dos quadros que o autor registra tais personagens. Elas são diversas e por essa diversidade, tentar-se-á entender a virulência de como eram tratadas, cujotexto acentuacom solidez a capacidade histórica a que o escritor se refere nas recorrentes reminiscências temporais.

É preciso acrescentar que essa apropriação desse tempo por essas personagens pode assumir variedade de formas, desde a armadilha da imitação servil, como aconteceu com Emma Bovary, passando por todos os estados da fascinação, da suspeição, da rejeição, até a busca do justo distanciamento em relação a modelos de identificação e a seu poder de sedução. Aprender a narra-se poderia ser o benefício dessa apropriação crítica. Aprender a narra-se é também aprender a narra a si mesmo de outro modo (RICOEUR,2006:115)


O poder narrar-se é pôr uma problemática inteira em movimento sob a perspectiva semiótica do termo identidade narrativa. Por essas três mulheres as leituras têm perspectiva de pôr em evidência a palavra “amante”. Paul Ricoeur iluminará com sua hermenêutica filosófica as verdades nas confissões dos relatos da vida no passado e Umberto Eco nos adverte que existe “semiótica da comunicação e semiótica da significação”.O estudo abordado parte da pesquisa bibliográfica com olhar na perspectiva semiótica de Umberto Eco observando a ambivalência recorrente no texto pelas vias de acesso da palavra – amante – utilizada na capa da obra e a confissão do mal e do desejo de uma vida boa pelo viés filosófico em Paul Ricoeur.
A obra é perfeita no intuito de confundir o real com o ilusório nesse universo literário, capaz de sensibilizar e deixar atônito o leitor pouco avisado. “O trabalho estético requer complexidade e, no rastro de produzir força de simular e criar uma realidade como maneira objetiva de captar o real” (BRAITH, 2017:5), a autora, por meio de seu narrador, mostra personagens individualizadas e ironizadas pelas caracterizadoras cisões dos abusos bem como pela motivação material de representação. Em Seis passeios pelo bosque da ficção (1997)Ecomenciona o “leitor como um ingredientede fundamental importância, não só do processo de contar uma história, como também da própria história” (p:07).
Com base na assertiva e incomodada de como o autor redesenha a amante mulher nesse romance, volta-se o olhar para observar a questão, no entanto, sem enquadrar a perspectiva de feminismoque atualmente anda em voga neste “post-modernismo[1]”. “Cabe, portanto, observar as regras do jogo, e o leitor – modelo é o alguém que está ansioso para jogar” (ECO,1997:16). Nesse recurso da representação pela linguagem, as mulheres surgem “complexas”. É guerreira,  na representação de “Maria Caxinauá”, que entra criança na casa de Pierre Bataillon para cuidar de outra criança, Zequinha, e acaba “amante” da mesma criança, quando ambos cresceram.

Pierre Bataillon chegou em 1876 e estabeleceu o seu domínio com facilidade, sobre as terras dos Caxinauás da Amazônia”[...] Destruiu a cultura Caxinauá pelo progresso, novo deus que era, e a quem eles se submeteram sem reclamos, quase alegres. A partir de então as mulheres e os rapazes Caxinauás se transformaram em objetos do Seringal, pela força da tropa de guerra do Coronel (SAMUEL,2005:25).

A fim de compreender melhor o texto em prosa apresenta-se Foster (2006) que aborda acerca de fantasia textual  com a ideia de que “é sabido que um livro não é real” (p:125), que todos os romances contam uma história, que “contêm personagens e têm enredos ou fragmentos de enredos, de modo que podemos aplicar a eles o aparato que se ajusta ao leitor” sempre a espera que ele seja natural (p:124). Nesta história, quase se vislumbra um pedido em Rogel Samuel para que sejam aceitos certosfatos deste livro como relato real, especialmente o que envolve as figuras das mulheres.  Este romance é dramático pela sorte na vida das personagens, mas, pela linguagem de Samuel, vemos o sofrimento virar, com ironia, a Comédia Humana fugida de Balzac e cair no colo dos leitores de Samuel. O crítico avalia o texto do autor e pondera a lógica do seu argumento e estuda o reflexo que esta linguagem está sendo produzida para ficar no limiar da mesma auto-relexividade  da criação estética. Aqui, propomos pôr em tese a existência das mulheres no seringal da Amazônia.

Maria Caxinauá: não é Eva, mas é a primeira mulher do texto

Pois a Caxinauá é a vingança acumulada, petrificada. Observada a distância, era a concentração do Òdio. De perto, era o Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem abertos (SAMUEL:68).
A Caxinauá olhou aquelas margens. Ali viveram seus antepassados. [...] Súbito pressentiu o perigo. De repente sentiu que de dentro, do fundo da mata, se aproximava algo ameaçador. Ela sabia que aquilo vinha muito rápido – nada o tinha denunciado, mas ela rapidamente saiu de dentro d’água. Mas era tarde: Foi agarrada por mãos enormes, por enormes braços de um ser monstruoso, por trás, e ela sentiu o cheiro de cumaru e o forte calor daquele corpo e soube de imediato de quem se tratava, que seria ela mais uma das vítimas de Paxiúba, o Mulo. Ficou imóvel. Deixou-se levar. Sabia o que ele queria. O corpo do monstro estremecia, de prazer, era quente, o desejo roçava pelas costas da índia, arfando, como cão. (SAMUEL:103) Ela viu que ele não a deixaria viva, que ele sabia que ela ia vingar-se, se escapasse viva. Mas Paxiúba agora tentava por outros modos, rolava mesmo, urrando e masturbando-se como touro furioso, poupando-a. Depois que ele desapareceu, misterioso como tinha aparecido, ela caiu dentro da água para limpar de si aquela gosma peçonhenta (SAMUEL:104)

Há de se dizer que “o artesão de palavras não produz coisas, mas somente-coisas, inventa o como-se” (RICOEUR, 1994:76), por assim ser, a referência que ora tem Maria Caxinauácomo modelo e a cópia do que se pretende aqui abordar: a questão da mulher nessa conexão lógica do verossímil em ser destacada das exigências culturais do aceitável papel de servir de “amante” que Samuel apresenta ao leitor.Ela caiu dentro da água para limpar de si aquela gosma peçonhenta Por ela se mostra a inesgotável fonte de violência recebida na surpresa do encontro surpresa, com potencial trágico e o mais denso estupro,pois ele tentava por outros modos, rolava mesmo, urrando e masturbando-se como touro furioso, poupando-ade deixar marcas do ato completo, e de forma mais significativa sobre o ser humano.Paxiúba, com a atitude de não penetrar Caxinauá, cavou uma hesitação na ação não realizada, incompleta, plantou uma dúvida no leitor: foi por medo?, foi por saber da violência que ela é capaz?. Isso gerou sobre Paxiúba o reconhecimento de seu caráter dramático, perda de autonomia, uma inquietação que não se consegue esgotar já que ele está plantado sob a égide do homem violento e que tudo consegue. Ainda resta o uso do verbo -“tentava”por outros modos - se insurge no verbo a própria explicação por razão causal, dificuldade sobre um fundo de acontecimentos. Na análise semiótica dos acontecimentos, tem-se uma mulher forte, livre, consciente de suas ações que, deliberadamente, saiu do convívio social, contrariando a dinâmica do seu povo, conforme o narrador “é impossível para um Caxinauá viver fora da tribo. Eles constituem um povo simbiótico, um organismo só, vivo, único. Não são seres individuais” (SAMUEL:68).
Maria Caxinauá é uma personagem com suscetíveis imputações por parte de outras personagens, cujas ações e reações são incompatíveis com uma criança de seis ou sete anos:
Em 94 meu filho ganhou a ama Maria Caxinauá, uma índia um pouco mais velha do que ele, que na época tinha quatro anos. Cresceram juntos. Quando menino fazia alguma travessura, a ama era castigada em seu lugar. Ifigênia batia duro mas a índia não gemia, não chorava. Parecia não sentir dor. Não confio em índio. São traiçoeiros, cruéis, vingativos, capazes de vingança, mesmo depois de anos. Mas Ifigênia não me ouvia, não acreditava.[...] (SAMUEL:66).

Tem esse ligeiro relato do caráter de Caxinauá. Ora, a imaginação, tomada em si mesma, está situada na escala do passado, mas que se afigura os modos de dar conhecimento da natureza da mulherCaxinauá. Essa declaração é ainda mais notável porque, Samuel faz uma magnifica definição do tempo passado como continuação da existência e contata-se que a mulher persevera na mesma braveza de antes. O corpo humano que foi afetado uma vez por outro corpo reage na mesma presunção da sobrevivência, não enfrenta, não reage. Parecia não sentir dor pelo silencio de “plenitude” ou silêncio de culpado que conduz a um incontornável impasse. O silêncio faculta à personagem um pleno domínio do espaço exterior, a natureza regressiva do ato sexual manifesta-se, pelo contrário, numa dificuldade em progredir no espaço que equivale a uma desestruturação da identidade característica do drama. Maria Caxinauá viveu atenta à vida que tinha, sem prosperidade, não foi à toa que furtou, tomou para si, ou para a neta no futuro a herança que jamais construiu. Roubou um cofre da casa de Bataillon e que nunca foi encontrado.
Aristóteles elaborou sua noção de pôr em intriga (muthus) visando à representação (mimésis) eda ação. Pôr emintriga:

Maria Caxinauá, a índia (que) parecia velha como a floresta. A fresca maacu expõe seus braços à imaginação do olhar. As mulheres e os rapazes Caxinauás se transformaram em objetos do Seringal, pela força da tropa de guerra do Coronel (SAMUEL: 56-25).  As faces murchas indicavam que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância, desprezo, desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço da gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma (SAMUEL:68).


Por esta primeira representante se percebeas vicissitudes da vida, vê-se que esta procura uma confirmação na configuração narrativa como afirmação no plano social e financeiro. Ela escondeu a fortuna furtada que só é encontrada para sobreviverem depois do extravio econômico.

Zilda: privilegiada ou lavadeira de roupas

A segundapersonagem feminina é Zilda, oprimida nos sentidos e sentimentos, é revelada pela violência do estupro - sentiu o gozo do prazer sexual com o Paxiúba, alegria antes nunca sentida em matrimônio.

Zilda nada dissera ao marido Laurie Costa seu único bem. Ela o amava, boníssimo. Mas não tivera filhos, não pudera. E mais: Nunca sentira nada com ele. Servia ao marido. Só mulher à-toa devia sentir orgasmo. Seria morta por Laurie se gemesse, se tivesse o Gozo. (SAMUEL, p:42) Perto de Paxiúba sentia-se nauseada, contraía a boca de enojo, de enjoo de coisa nojenta, gosmosa, de grossa goma como o látex, a boca se enchendo de cuspe, que cuspia quando o rapaz chegava nela (SAMUEL:44).

O autor (SAMUEL) admite, de bom grado, que essa identificação entre o pensamento histórico e o “juízo sinótico” deixa em aberto os problemas epistemológicos propriamente ditos, tais como a “questão de saber se ‘sínteses interpretativas’ podem ser logicamente comparadas, se há razões gerais de preferir uma à outra e se estas últimas constituem critérios da objetividade e da verdade histórica” (RICOEUR, 2005: 224).

Zilda, esposa do Laurie Costa, lavadeira das roupas volta galopante, no ódio, no nojo, no asco e escarnio gosmento. E a voz que ouviu, na revoada de sons de índio, dicção de um fenômeno conivente, curiosamente fino, de metal, [...] E Zilda sob aquela pressão se mexia dentro de si, incomodada, e em pânico, com asco e odioso horror, ao sentir-se tocada na hospitalar penetração da cabeça assassina e animalizada da voz, nativa do cumaru, fecundante terra – timbre autônomo e sibilante da serpente e não do agressivo mas do insistente, da demoníaca ousadia que dizia: ‘te conheço’. E dizia: ‘não te podes esconder de mim’ (SAMUEL: 40).


Esse aspecto, a história não é a escrita, mas a reescrita das histórias na literatura para dar ciência ao leitor. Em compensação, a entrega é seguir reflexivo, pois a linguagem encena a representação pictórica, como também entre a teoria do significado e a teoria da inferência que responde à situação do historiador em vias de re-narrar e de reescrever. A tarefa do autor não é acentuar os incidentes, mas reduzi-los e torná-los combustão para o leitor entrar no fogo da diegese.
A razão concerne ao funcionamento da significação das obras da literatura enquanto opostas às obras científicas, cujas significações se devem tomar literalmente. Em literatura, podem-se considerar muitas as vias de acesso para dizer sobre o que pode ser o texto, a escolha da ciência é que há de atender a leitura, é que dará a direção pomposa ao texto. Na Poética de Aristóteles,  oestagira assevera que “a metáfora é uma aplicação a uma coisa de nome que pertence a outra” (RICOEUR :59), nesta narrativa o que se procura demonstrar é o emaranhado semiótico, em que os signos referentes a pessoas   possam prevalecer sobre os objetos ou estados do mundo.
Desta forma, Zilda, semioticamente representa acontecimentos antagônicos no seringal. Primeiro, por ser ela a aspiração de todos os homens daquele local, pois “o marido fora o único seringueiro do Manixi que tinha podido trazer mulher” (SAMUEL: 41). Ela e o marido são privilegiados por estarem juntos em ambiente inóspito, desassistido, degradante e muitas vezes cruel, podendo compartilhar nos momentos de intimidade as alegrias – se é que as tinham – e tribulações que o casal saberia confidenciar um ao outro pela insegurança e desconfiança que reinava ali. Segundo, porque “ficou lavadeira pessoal do Palácio, das roupas brancas, exceto as lavadas em Lisboa, que aquelas águas, a escória das águas, águas mendigas, encardia a roupa” (SAMUEL: 41).
Observa-se que a função de Zilda era “ficar lavadeira” e não “ser lavadeira”, simbolicamente uma ocupação passageira que lhe garantiria a estada local, deixar as roupas limpas de sujeira, nódoas e manchas e de forma metonímica os desvios morais daquele grupo a quem servia. O verbete “lavadeira” no dicionário de símbolos expressa:

“Na Índia, a lavadeira é uma mulher de casta inferior. Por outro lado, o tantrismo fez da lavadeira (dombi) um símbolo importante quando associa o fato de ela pertencer a uma classe inferior à depravação sexual considerada como algo necessário – simbolicamente ou não – para a execução de certos ritos”. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2002:.537)

A personagem Zilda cumpre um papel muito próximo do proposto na Índia de “algo necessário [...] para certos ritos”, no romance de Samuel cabe a função de executar os ritos da limpeza física e espiritual, pois vê-se, no início de seu fazer, a descrição do narrador “Zilda lavava roupa branca e pura, iluminada, a espuma saindo e se indo assim de sabões e bolhas de vidro, se esparzindo na bordadura branca da superfície do rio espelhado de sol e na purificação religiosa da água” (SAMUEL: 39). Alguns elementos são simbólicos na “amante” Zilda, ela ficou lavadeira das roupas branca, a serem purificadas pelo reflexo do sol nas águas correntes regeneradoras do rio.

Diana: vingança e recompensade Caxinauá

A terceira personagem na composição do corpus desta análise é DianaDartigues que aparece próxima ao desfecho da narrativa de forma periférica, mas vinculada à personagem – Ribamar d’Aguirre de Souza -  que engendra o final do enredo e reverte a situação de penúria pela qual passa o núcleo maior do romance representado por Juca das Neves, dono do falido Armazém das Novidades. Ambos, Ribamar e Diana, são citados no mesmo capítulo do romance e aparecem na trama de forma inesperada como um “trunfo” do jogador vitorioso no jogo de cartas.
Diana tem o perfil traçado no capítulo “Dezenove: mistério”. De início, o narrador informa que não se conhecia sua origem e que alugara uma casa que tivera como proprietário anterior o Barão Rymkiewcz, diretor do Manaus Harbour.  Mais adiante, suas características físicas:
Alta, magra, esguia, elegante, Diana tinha uma pequena cabeça oval, sobre a qual escorriam os longos cabelos muito lisos, negros e brilhantes. A pele morena, os olhos amendoados, o pescoço, comprido e ereto, as mãos finas e longas. Não se podia dizer bonita, mas era uma mulher exótica. (SAMUEL: 143)

Ela era citada como uma das mulheres mais elegantes do Brasil, na coluna do Ibrahim Sued, do Rio de Janeiro. Magra, alta, elegante e sensual. Seu andar, sua maneira de jogar os braços para frente, o jeito de torcer o pescoço comprido, garça pernalta, gestos estudados, manequim francês. Diana não andava – desfilava. (SAMUEL:158)

Em outra passagem o narradorapresenta amaneira sofisticada de Diana se trajar: “Sempre com vestidos claros, ressaltando a tez morena, sempre com sapatos altos. Quase não usava joia, sempre na medida certa – pequeno broche, ou um único anel o dedo, um colar de pérolas. E só. Às vezes, uma fitinha no pescoço, com um rubi.” (SAMUEL: 158)
“As crônicas sociais alimentavam o mito – Diana Dartigues. [...] ‘Diana é divina’. (SAMUEL: 157). Percebe-se uma infinidade de demonstrações lisonjeiras para essa personagem que saída da obscuridade toma a forma de uma estrela do expoente social amazonense. Contudo, sua importância na trama diz respeito à Maria Caxinauá no episódio do furto de um cofre com libras esterlinas no início da trama.
Acerca do episódio mencionado a proprietária do cofre sempre a culpou: “Na época, ela [Caxinauá] foi amarrada a um formigueiro e quase morreu. Mas nada confessou” (SAMUEL: 67). O desvendamento do mistério se dá no penúltimo capítulo do romance no diálogo sobre questões políticas de Abraão Gadelha – candidato derrotado ao governo do Amazonas – e Benito Botelhoque escreveria matérias insidiosas sobre o governo que estaria por vir. Naquele momento, vê-se Diana Dartigues casada com Ribamar de Souza, eleito senador da República e suplente do mesmo. A essa altura, Ribamar era um bem sucedido empresário em meio a falidos comerciantes, donos de casas aviadoras, seringalistas e tantos outros que sofreram a derrocada do monopólio da borracha no Amazonas.
Na voz do narrador:
Era belo assistir ao casal Ribamar-Diana saindo daquele Buick branco com chofer. Ribamar, bem mais velho, tipo de empresário, sorrindo para todos. E Diana, de chapéu, leve sorrindo, digna, alta, magra, aristocrática, um pé, outro pé, jovem, braço levantados para frente, ou jogados para frente com displicência, quadris meio tortos, mas sem exagero.
[...]Mesmo os adversários respeitavam e temiam. (SAMUEL:158)

O casal tem sua história cruzada pela falência de Juca das Neves que acolheu “Um rapaz, vindo do interior. Um finório educado. Está morando lá, e trabalha agora no Armazém. Chama-se Ribamar”. (SAMUEL: 115). Aquele rapaz simplório se torna “amasio” de Diana e esta usa o dinheiro para que Ribamar realizasse o maior negócio durante a crise do Amazonas, transformar as casasda rua Frei José dos Inocentes em bordeis, além disso “com auxílio de Juca das Neves, modernizou o Armazém das Novidades, passando a representar vários produtos norte-americanos, como as máquinas de costura Singer” (SAMUEL: 143).
Conforme a semiologia da narrativa Diana representa a vingança e recompensa de Maria Caxinauá como forma de retribuição dos ultrajes sofridos pela índia enquanto ama de Zequinha Bataillon “A recompensa do serviço prestado e a vingança do prejuízo sofrido são as duas faces da atividade retribuidora”. (BREMOND: 132). Diana é neta de Zequinha Bataillon com Maria Caxinauáque sofreu castigos e busca vingança. Diana herdou de sua avó o cofre com as libras esterlinas, a recompensa pelos maus-tratos recebidos porCaxinauá quando era agregada no seringal.
Quanto ao papel de “amante”, objeto do estudo, Diana simboliza a última ponta de uma série de mulheres que se tornam amantes durante a extração do látex. A primeira, Maria Caxinauá foi para Zequinha “a segunda mãe e a primeira amante” (SAMUEL: 77).
A segunda personagem, Júlia, tem relação com um massacre empreendido pela etnia Numa. Em busca de capturá-los,saíram vários caçadores dentre eles João Beleza e encontraram uma mulher com uma espécie de embrulho que escondia entre as mãos; na corrida para esconder-se ela “caiu estendida no chão, morta pelo cano do próprio João Beleza” (SAMUEL: 84). Na queda, deixou rolar o embrulho que João Beleza descobriu ser uma criança e a chamou de Júlia.“João beleza tratava-a como filha. Anos mais tarde Júlia preparava-lhe a comida, limpava o barracão, criava os animais e os domesticava. Júlia crescia. E devia de ser extremada amante, pois João Beleza dormia sempre com ela”. (SAMUEL: 85). Adulta, Júlia mata João Beleza com veneno de rato. Depois do episódio ela desaparece na mata sem que ninguém mais a veja.Seria Júlia a própria Diana? Fica a indagação.
Por fim, Diana foi amante de Ribamar antes de se casar em cerimônia discreta. Dentre tantos personagens que não conseguem ter um bom desfecho, Diana é a que melhor corresponde a uma narrativa com final feliz, mesmo o narrador informando que o casal “alguns anos depois Ribamar de Souza e Diana Dartigues estavam separados”. (SAMUEL, p:163). De qualquer forma, no final da trama, a neta de Maria Caxinauá tem dinheiro e prestígio e, no contexto da semiótica, ela representa a vingança e a recompensa da primeira mulher do texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fertilização cruzada de textos, olhares e pontos de vista radicados numa acentuada dissolução, é parte das fronteiras estanques entre as outras artes, sem que, necessariamente, isso signifique perda da capacidade analítica ou de rigor crítico das mesmas.
O semiologista francês Claude Bremond, no artigo “A lógica dos possíveis narrativos”, põe a lume a seguinte proposição:
O estudo semiológico da narrativa pode ser dividido em dois setores: de um lado, a análise da técnica de narração; de outro lado, a pesquisa de leis que rejam o universo narrado. Estas leis mesmas pertencem a dois níveis de organização: a) eles refletem as constrições lógicas que toda série de acontecimentos ordenada sob a forma de narrativa deve respeitar sob pena de ininteligível; b) elas acrescentam a estas constrições, válidas para todas as narrativas, as convenções de seu universo particular, característico de uma cultura, de uma época, de um gênero literário, de um estilo de um narrador ou, no limite, apenas dessa narrativa mesma.(BREMOND, 2008:114)

O romance de Rogel Samuel segue as convenções demonstradas por Bremmond, corroborada pela condição do romancista ser um crítico literário também. Contudo, o fato de escrever sobre espaço, época e tema específicos regidos por idiossincrasias pouco conhecidos pelos leitores de um modo geral particulariza a narrativa, conserva as peculiaridadesantes descritas e fornece farto material para estudo desse gênero literário.
Obviamente que a noção de intertextualidade em Rogel Samuel é bem clara, mesmo assim, o texto é inovador pelas várias acepções e concepções política e cultural revelado na experiência do Amante das Amazonas vibrante de sexo, colonização e desamor à natureza. O estupro em Zilda é bem isso, invasão de privacidade. E o discurso necessita tanto da presença próxima de outros(leitores) como a fabricação do mundo (narrativa) para sempre estarmos em contato com ele.
            É por esse viés que Samuel envereda mostrando o caráter das mulheres, dá-lhes consciência crítica na construção das personagens Maria Caxinauá, Zilda e Diana. Elas traduzem na arte dramática da vida, a de ser mulher em Seringal no tempo de extração do látex na Amazônia. No texto, abordam-se as situações com algum humor e pouco romantismo, e esta é uma época em que o escritor já se assume na condição institucional da literatura na Amazônia, imbricado na sintonia com a consciência crítica e autocrítica que outros pares também o fizeram. A pertinência deste debate em torno das questões apresentadas se afigura irrefutável modernidade e, sobejamente, evidencia na literatura, a qualidade de produção criativa de um autor que se propõe ser visto pela ótica da Crítica Literária.
Fica, contudo, o enigma:  quem seria o “amante das amazonas”? o narrador que se despede dos leitores pedindo que não se esqueçam da história, por não mais estar vivo; ou o próprio romancista que chama a Amazônia de “lugar fantástico”que está no fim; ou,simplesmente, umtítulo chamativo para aguçar a curiosidade do leitor.

Referências Bibliográficas:

BRAIT, Beth. A Personagem. 9ª. ed. São Paulo: Contexto, 2017
BREMOND, Claude. A lógica dos possíveis narrativos. In BARTES, Roland [et.al.]. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. 5ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2019.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 17ª. ed. José Olympio: Rio de Janeiro, 2002.
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Trad. HildegardFeist. São Paulo: Companhia das Letras. 2ª. reimpressão, 1997.
_____________.Tratado geral de Semiótica. Trad. Antônio de Pádua Danesi e Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2003.
FOSTER, Edward Morgan. Aspectos do Romance. Org Oliver Stallybrass. Trad. Sérgio Alcides. São Paulo: Globo, 4ª. ed. 1 reimpressão, 2006.
RICOEUR, Paul, Teoria da interpretação. Trad. Artur Morão. Edições 70 LDA. Lisboa- Portugal, 1976.
_____________. Do texto a ação. Trad. Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando. Editora RÉS, Porto- Portugal, 1986.
_____________. Tempo e narrativa (tomo I). Trad. Constança Marcondes Cesar – Campinas, SP: Papirus,1994.
_____________. O percurso do reconhecimento. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
SAMUEL, Rogel. O Amante das Amazonas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005.

Simpósio Temático:
N°: 03
Título: Hermenêutica e Semiótica nas literaturas
Coordenadores: Dra. Francisca de Lourdes Souza Louro,
Dra. Auricléa Oliveira das Neves








[1] Pós-Modernismo palavra usada pela Doutora Ana Paula Arnaut, em seu livro,Post-Modernismo no Romance Português Contemporâneo: Fios de Ariadne - Máscaras de Proteu,diz que: quando uma obra aborda um conjunto de obras e de problemas em boa parte ainda em desenvolvimento.Ex: a subversão da representação, os efeitos de multi-perspectivismo, a pluralidade dos registros e das linguagens, a incorporação num discurso literário não raro fragmentário de discursos outros...Almedina, 2002.

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