AS AMANTES NO PERÍODO DA EXTRAÇÃO DO
LÁTEX NA AMAZÔNIA
Francisca
de Lourdes Souza Louro
UEA,
Letras (Português).
lourdeslouro@yahoo.com.br. Manaus, Amazonas
Auricléa
Oliveira das Neves
Academia
de Letras do Brasil – Amazonas.
auricleaneves@gmail.com. Manaus, Amazonas
.
RESUMO
No
romance “O amante das Amazonas”,
Rogel Samuel se utiliza dos objetos de realidade motivadora para efetivar sua
meditação poética. A matéria deste estudo tem, como suporte teórico, a
abrangência da visão do semioticista, crítico e escritor Umberto Eco, em que se
perceberá, por sua linha de pesquisa, as complexas interações que se validarão
por incursões do referido teórico. Assim
sendo, algumas figuras femininas, serão escolhidas como matéria de análise para
observar como o autor as desenhou em seu romance e como as efetivou na
atividade de representação amazônica. O que se insinua aqui é a noção de que O amante das Amazonas é, ainda, um
documento de trabalho para o escritor que passou longos dez anos a pesquisar e
publicar para dar ao público, o direito de conhecer a época do látex, onde se
desenvolve a narrativa. Olhar-se-á a ambivalência recorrente no texto pelas
vias de acesso sob a perspectiva semiótica da palavra – amante – utilizada na
capa da obra. Espera-se que este estudo atenda, não só a comunidade acadêmica
que queira buscar por estudos semióticos, mas também, o público interessado nas
narrativas de Rogel Samuel voltadas para a significação da mulher no período da
extração da borracha na Amazônia.
Palavras-
chave: semiótica; hermenêutica, romance; amante; leitor; figura feminina
INTRODUÇÃO
A arte é
tudo – tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um
povo.
(Eça de
Queirós)
A prática da escrita pode alterar a memória ao colocar em
evidência os conflitos existentes do passado neste presente. Pode também,
colocar em dúvida verdades relatadas pela observação de
um narrador vindo de fora, e lança seu olhar por sobre a sociedade e conta, por
sua experiência, a vida de todos nós. Escrever é sempre pôr-se na pele de um
outro, isso é mais instigante para a natureza da Literatura, o autor se esconde
na máscara do outro e diz ora absurdos, ora excitações, ora hesitações, mas
sempre representações. Os paradoxos internos, diante da literatura, dilui, mas
também, notabiliza alguém, seja um personagem, seja o narrador, seja o autor.
Aqui escolhemos notabilizar algumas mulheres que foram manipuladas sexualmente
por um homem, cuja aparência é de uma fortaleza humana, o Mulo Paxiúba um
Ajuricaba do avesso. O escritor deu vida a todos os personagens e consagrou
alguns com dose excessiva por este copular com as mulheres que ele escolhia.
Para usar? Sim, não havia amor nesse homem que é da terra, é movido pelo
instinto animal. Mas, aqui neste cenário Amazônico, escolhemos apresentar três
figuras femininas e duas desgraçadamente padecem nas mãos de Paxiúba.
Qualquer reflexão preambular sobre literatura e a sua
existência enfrenta, de início, a questão de saber se é possível (ou até que
ponto é possível) estabelecer as fronteiras que delimitam o fenômeno literário:
ou, por outras palavras, indagar o que cabe e o que não cabe dentro do campo
literário. Diante do que sugere a reflexão proposta neste estudo, pode-se
afirmar que, Rogel Samuel, em O amante das
amazonas(2005), traz a História da sociedade da época, de gente que
experienciou a extração do látex, e de como os mesmos viviam nos Seringais da
Amazônia. As personagens fazem parte da cultura de desenvolvimento social e financeiro
da cidade que viveu as agruras da boa e da má sorte. Por esses, a vida se redesenha em papéis
trágicos e desenhar as figuras femininas é legitimar o testemunho de informação
que elas dão como existência para que se possa apreciar o habitante regional da
realidade ficcional.
Escolheu-se este texto, construído por quatro mãos, para dar
a certeza ao leitordeque se objetivou ampliar oportunidade em conhecimentos
quando se utilizou duas correntes de pensamentos, Semiótica e Hermenêutica
Filosófica. Esta investigação recaisobre a escolha detrês mulheres no romance
de Rogel Samuel por entender que o leitor/a, possa se reconhecer em uma
determinada personagem tomada em uma determinada intriga (RICCOEUR,2006 :115).
Pretendeu-se demonstrar
a notoriedade de cada umapersonagem na filosofia da arte literária deste tempo
de caos social que os seringais enfrentaram e, institucionalmente,elas são as
distintas representantes da Amazônia. Neste sentido, é possível surpreender o
leitor pela dimensão histórica dos quadros que o autor registra tais personagens.
Elas são diversas e por essa diversidade, tentar-se-á entender a virulência de
como eram tratadas, cujotexto acentuacom solidez a capacidade histórica a que o
escritor se refere nas recorrentes reminiscências temporais.
É preciso acrescentar que essa
apropriação desse tempo por essas personagens pode assumir variedade de formas,
desde a armadilha da imitação servil, como aconteceu com Emma Bovary, passando
por todos os estados da fascinação, da suspeição, da rejeição, até a busca do
justo distanciamento em relação a modelos de identificação e a seu poder de
sedução. Aprender a narra-se poderia ser o benefício dessa apropriação crítica.
Aprender a narra-se é também aprender a narra a si mesmo de outro modo (RICOEUR,2006:115)
O poder narrar-se é pôr uma problemática inteira em
movimento sob a perspectiva semiótica do termo identidade narrativa. Por essas três mulheres as leituras têm
perspectiva de pôr em evidência a palavra “amante”. Paul Ricoeur iluminará com
sua hermenêutica filosófica as verdades nas confissões dos relatos da vida no
passado e Umberto Eco nos adverte que existe “semiótica da comunicação e
semiótica da significação”.O estudo abordado parte da pesquisa bibliográfica
com olhar na perspectiva semiótica de Umberto Eco observando a ambivalência
recorrente no texto pelas vias de acesso da palavra – amante – utilizada na
capa da obra e a confissão do mal e do desejo de uma vida boa pelo viés
filosófico em Paul Ricoeur.
A obra é perfeita no intuito de confundir o real com o
ilusório nesse universo literário, capaz de sensibilizar e deixar atônito o
leitor pouco avisado. “O trabalho estético requer complexidade e, no rastro de
produzir força de simular e criar uma realidade como maneira objetiva de captar
o real” (BRAITH, 2017:5), a autora, por meio de seu narrador, mostra
personagens individualizadas e ironizadas pelas caracterizadoras cisões dos
abusos bem como pela motivação material de representação. Em Seis passeios pelo bosque da ficção (1997)Ecomenciona
o “leitor como um ingredientede fundamental importância, não só do processo de
contar uma história, como também da própria história” (p:07).
Com base na assertiva e incomodada de como o autor redesenha
a amante mulher nesse romance, volta-se o olhar para observar a questão, no
entanto, sem enquadrar a perspectiva de feminismoque atualmente anda em voga neste
“post-modernismo[1]”.
“Cabe, portanto, observar as regras do jogo, e o leitor – modelo é o alguém que
está ansioso para jogar” (ECO,1997:16). Nesse recurso da representação pela
linguagem, as mulheres surgem “complexas”. É guerreira, na representação de “Maria Caxinauá”, que
entra criança na casa de Pierre Bataillon para cuidar de outra criança,
Zequinha, e acaba “amante” da mesma criança, quando ambos cresceram.
Pierre
Bataillon chegou em 1876 e estabeleceu o seu domínio com facilidade, sobre as
terras dos Caxinauás da Amazônia”[...] Destruiu a cultura Caxinauá pelo
progresso, novo deus que era, e a quem eles se submeteram sem reclamos, quase
alegres. A partir de então as mulheres e os rapazes Caxinauás se transformaram
em objetos do Seringal, pela força da tropa de guerra do Coronel (SAMUEL,2005:25).
A fim de compreender melhor o texto em prosa apresenta-se Foster
(2006) que aborda acerca de fantasia textual com a ideia de que “é sabido que um livro não
é real” (p:125), que todos os romances contam uma história, que “contêm
personagens e têm enredos ou fragmentos de enredos, de modo que podemos aplicar
a eles o aparato que se ajusta ao leitor” sempre a espera que ele seja natural
(p:124). Nesta história, quase se vislumbra um pedido em Rogel Samuel para que sejam
aceitos certosfatos deste livro como relato real, especialmente o que envolve as
figuras das mulheres. Este romance é
dramático pela sorte na vida das personagens, mas, pela linguagem de Samuel,
vemos o sofrimento virar, com ironia, a Comédia
Humana fugida de Balzac e cair no colo dos leitores de Samuel. O crítico
avalia o texto do autor e pondera a lógica do seu argumento e estuda o reflexo
que esta linguagem está sendo produzida para ficar no limiar da mesma
auto-relexividade da criação estética.
Aqui, propomos pôr em tese a existência das mulheres no seringal da Amazônia.
Maria Caxinauá: não é Eva, mas é a primeira
mulher do texto
Pois
a Caxinauá é a vingança acumulada, petrificada. Observada a distância, era a
concentração do Òdio. De perto, era o Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem
abertos (SAMUEL:68).
A
Caxinauá olhou aquelas margens. Ali viveram seus antepassados. [...] Súbito pressentiu
o perigo. De repente sentiu que de dentro, do fundo da mata, se aproximava algo
ameaçador. Ela sabia que aquilo vinha muito rápido – nada o tinha denunciado,
mas ela rapidamente saiu de dentro d’água. Mas era tarde: Foi agarrada por mãos
enormes, por enormes braços de um ser monstruoso, por trás, e ela sentiu o
cheiro de cumaru e o forte calor daquele corpo e soube de imediato de quem se
tratava, que seria ela mais uma das vítimas de Paxiúba, o Mulo. Ficou imóvel.
Deixou-se levar. Sabia o que ele queria. O corpo do monstro estremecia, de
prazer, era quente, o desejo roçava pelas costas da índia, arfando, como cão. (SAMUEL:103)
Ela viu que ele não a deixaria viva, que ele sabia que ela ia vingar-se, se
escapasse viva. Mas Paxiúba agora tentava por outros modos, rolava mesmo,
urrando e masturbando-se como touro furioso, poupando-a. Depois que ele
desapareceu, misterioso como tinha aparecido, ela caiu dentro da água para
limpar de si aquela gosma peçonhenta (SAMUEL:104)
Há de se dizer que “o artesão de palavras não produz coisas,
mas somente-coisas, inventa o como-se” (RICOEUR, 1994:76), por assim ser, a
referência que ora tem Maria Caxinauácomo modelo e a cópia do que se pretende
aqui abordar: a questão da mulher nessa conexão lógica do verossímil em ser
destacada das exigências culturais do aceitável papel de servir de “amante” que
Samuel apresenta ao leitor.Ela caiu dentro da água para limpar de si aquela gosma peçonhenta Por ela se mostra a inesgotável
fonte de violência recebida na surpresa do encontro surpresa, com potencial
trágico e o mais denso estupro,pois ele tentava
por outros modos, rolava mesmo, urrando e masturbando-se como touro furioso,
poupando-ade deixar marcas do ato completo, e de forma mais significativa
sobre o ser humano.Paxiúba, com a atitude de não penetrar Caxinauá, cavou uma
hesitação na ação não realizada, incompleta, plantou uma dúvida no leitor: foi
por medo?, foi por saber da violência que ela é capaz?. Isso gerou sobre
Paxiúba o reconhecimento de seu caráter dramático, perda de autonomia, uma
inquietação que não se consegue esgotar já que ele está plantado sob a égide do
homem violento e que tudo consegue. Ainda resta o uso do verbo -“tentava”por outros modos - se insurge
no verbo a própria explicação por razão causal, dificuldade sobre um fundo de
acontecimentos. Na análise semiótica dos acontecimentos, tem-se uma mulher
forte, livre, consciente de suas ações que, deliberadamente, saiu do convívio
social, contrariando a dinâmica do seu povo, conforme o narrador “é impossível
para um Caxinauá viver fora da tribo. Eles constituem um povo simbiótico, um
organismo só, vivo, único. Não são seres individuais” (SAMUEL:68).
Maria Caxinauá é uma personagem com suscetíveis imputações
por parte de outras personagens, cujas ações e reações são incompatíveis com
uma criança de seis ou sete anos:
Em
94 meu filho ganhou a ama Maria Caxinauá, uma índia um pouco mais velha do que
ele, que na época tinha quatro anos. Cresceram juntos. Quando menino fazia
alguma travessura, a ama era castigada em seu lugar. Ifigênia batia duro mas a
índia não gemia, não chorava. Parecia não sentir dor. Não confio em índio. São
traiçoeiros, cruéis, vingativos, capazes de vingança, mesmo depois de anos. Mas
Ifigênia não me ouvia, não acreditava.[...] (SAMUEL:66).
Tem esse ligeiro relato do caráter de Caxinauá. Ora, a
imaginação, tomada em si mesma, está situada na escala do passado, mas que se afigura
os modos de dar conhecimento da natureza da mulherCaxinauá. Essa declaração é
ainda mais notável porque, Samuel faz uma magnifica definição do tempo passado
como continuação da existência e contata-se que a mulher persevera na mesma
braveza de antes. O corpo humano que foi afetado uma vez por outro corpo reage
na mesma presunção da sobrevivência, não enfrenta, não reage. Parecia não sentir dor pelo silencio de
“plenitude” ou silêncio de culpado que conduz a um incontornável impasse. O
silêncio faculta à personagem um pleno domínio do espaço exterior, a natureza
regressiva do ato sexual manifesta-se, pelo contrário, numa dificuldade em
progredir no espaço que equivale a uma desestruturação da identidade
característica do drama. Maria Caxinauá viveu atenta à vida que tinha, sem
prosperidade, não foi à toa que furtou, tomou para si, ou para a neta no futuro
a herança que jamais construiu. Roubou um cofre da casa de Bataillon e que
nunca foi encontrado.
Aristóteles elaborou sua noção de pôr em intriga (muthus) visando à representação (mimésis) eda ação. Pôr emintriga:
Maria
Caxinauá, a índia (que) parecia velha como a floresta. A fresca maacu expõe
seus braços à imaginação do olhar. As mulheres e os rapazes Caxinauás se
transformaram em objetos do Seringal, pela força da tropa de guerra do Coronel
(SAMUEL: 56-25). As faces murchas
indicavam que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela
mulher não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância,
desprezo, desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço
da gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si
mesma (SAMUEL:68).
Por esta primeira representante se percebeas vicissitudes da
vida, vê-se que esta procura uma confirmação na configuração narrativa como afirmação
no plano social e financeiro. Ela escondeu a fortuna furtada que só é encontrada
para sobreviverem depois do extravio econômico.
Zilda: privilegiada
ou lavadeira de roupas
A segundapersonagem feminina é Zilda, oprimida nos sentidos
e sentimentos, é revelada pela violência do estupro - sentiu o gozo do prazer
sexual com o Paxiúba, alegria antes nunca sentida em matrimônio.
Zilda nada dissera ao marido Laurie
Costa seu único bem. Ela o amava, boníssimo. Mas não tivera filhos, não pudera.
E mais: Nunca sentira nada com ele.
Servia ao marido. Só mulher à-toa devia sentir orgasmo. Seria morta por
Laurie se gemesse, se tivesse o Gozo. (SAMUEL, p:42) Perto de Paxiúba sentia-se
nauseada, contraía a boca de enojo, de enjoo de coisa nojenta, gosmosa, de
grossa goma como o látex, a boca se
enchendo de cuspe, que cuspia quando o rapaz chegava nela (SAMUEL:44).
O autor (SAMUEL) admite, de bom
grado, que essa identificação entre o pensamento histórico e o “juízo sinótico”
deixa em aberto os problemas epistemológicos propriamente ditos, tais como a
“questão de saber se ‘sínteses interpretativas’ podem ser logicamente
comparadas, se há razões gerais de preferir uma à outra e se estas últimas
constituem critérios da objetividade e da verdade histórica” (RICOEUR, 2005:
224).
Zilda, esposa do Laurie Costa,
lavadeira das roupas volta galopante, no ódio, no nojo, no asco e escarnio
gosmento. E a voz que ouviu, na revoada de sons de índio, dicção de um fenômeno
conivente, curiosamente fino, de metal, [...] E Zilda sob aquela pressão se
mexia dentro de si, incomodada, e em pânico, com asco e odioso horror, ao
sentir-se tocada na hospitalar penetração da cabeça assassina e animalizada da
voz, nativa do cumaru, fecundante terra – timbre autônomo e sibilante da
serpente e não do agressivo mas do insistente, da demoníaca ousadia que dizia: ‘te
conheço’. E dizia: ‘não te podes esconder de mim’ (SAMUEL: 40).
Esse aspecto, a história não é a escrita, mas a reescrita das
histórias na literatura para dar ciência ao leitor. Em compensação, a entrega é
seguir reflexivo, pois a linguagem encena a representação pictórica, como
também entre a teoria do significado e a teoria da inferência que responde à
situação do historiador em vias de re-narrar e de reescrever. A tarefa do autor
não é acentuar os incidentes, mas reduzi-los e torná-los combustão para o
leitor entrar no fogo da diegese.
A razão concerne ao funcionamento da significação das obras
da literatura enquanto opostas às obras científicas, cujas significações se
devem tomar literalmente. Em literatura, podem-se considerar muitas as vias de
acesso para dizer sobre o que pode ser o texto, a escolha da ciência é que há
de atender a leitura, é que dará a direção pomposa ao texto. Na Poética de
Aristóteles, oestagira assevera que “a metáfora é uma aplicação a uma coisa de
nome que pertence a outra” (RICOEUR :59), nesta narrativa o que se procura
demonstrar é o emaranhado semiótico, em que os signos referentes a pessoas possam
prevalecer sobre os objetos ou estados do mundo.
Desta forma, Zilda, semioticamente representa acontecimentos
antagônicos no seringal. Primeiro, por ser ela a aspiração de todos os homens daquele
local, pois “o marido fora o único seringueiro do Manixi que tinha podido
trazer mulher” (SAMUEL: 41). Ela e o marido são privilegiados por estarem
juntos em ambiente inóspito, desassistido, degradante e muitas vezes cruel,
podendo compartilhar nos momentos de intimidade as alegrias – se é que as
tinham – e tribulações que o casal saberia confidenciar um ao outro pela
insegurança e desconfiança que reinava ali. Segundo, porque “ficou lavadeira pessoal
do Palácio, das roupas brancas, exceto as lavadas em Lisboa, que aquelas águas,
a escória das águas, águas mendigas, encardia a roupa” (SAMUEL: 41).
Observa-se que a função de Zilda era “ficar lavadeira” e não
“ser lavadeira”, simbolicamente uma ocupação passageira que lhe garantiria a
estada local, deixar as roupas limpas de sujeira, nódoas e manchas e de forma
metonímica os desvios morais daquele grupo a quem servia. O verbete “lavadeira”
no dicionário de símbolos expressa:
“Na Índia, a lavadeira é uma mulher
de casta inferior. Por outro lado, o tantrismo fez da lavadeira (dombi) um símbolo importante quando
associa o fato de ela pertencer a uma classe inferior à depravação sexual
considerada como algo necessário – simbolicamente ou não – para a execução de
certos ritos”. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2002:.537)
A personagem Zilda cumpre um papel
muito próximo do proposto na Índia de “algo necessário [...] para certos
ritos”, no romance de Samuel cabe a função de executar os ritos da limpeza
física e espiritual, pois vê-se, no início de seu fazer, a descrição do
narrador “Zilda lavava roupa branca e pura, iluminada, a espuma saindo e se
indo assim de sabões e bolhas de vidro, se esparzindo na bordadura branca da
superfície do rio espelhado de sol e na purificação religiosa da água” (SAMUEL:
39). Alguns elementos são simbólicos na “amante” Zilda, ela ficou lavadeira das
roupas branca, a serem purificadas pelo reflexo do sol nas águas correntes
regeneradoras do rio.
Diana:
vingança e recompensade Caxinauá
A terceira personagem na composição
do corpus desta análise é DianaDartigues
que aparece próxima ao desfecho da narrativa de forma periférica, mas vinculada
à personagem – Ribamar d’Aguirre de Souza - que engendra o final do enredo e reverte a
situação de penúria pela qual passa o núcleo maior do romance representado por
Juca das Neves, dono do falido Armazém
das Novidades. Ambos, Ribamar e Diana, são citados no mesmo capítulo do
romance e aparecem na trama de forma inesperada como um “trunfo” do jogador vitorioso
no jogo de cartas.
Diana tem o perfil traçado no
capítulo “Dezenove: mistério”. De início, o narrador informa que não se
conhecia sua origem e que alugara uma casa que tivera como proprietário
anterior o Barão Rymkiewcz, diretor do Manaus Harbour. Mais adiante, suas características físicas:
Alta,
magra, esguia, elegante, Diana tinha uma pequena cabeça oval, sobre a qual
escorriam os longos cabelos muito lisos, negros e brilhantes. A pele morena, os
olhos amendoados, o pescoço, comprido e ereto, as mãos finas e longas. Não se
podia dizer bonita, mas era uma mulher exótica. (SAMUEL: 143)
Ela
era citada como uma das mulheres mais elegantes do Brasil, na coluna do Ibrahim
Sued, do Rio de Janeiro. Magra, alta, elegante e sensual. Seu andar, sua
maneira de jogar os braços para frente, o jeito de torcer o pescoço comprido,
garça pernalta, gestos estudados, manequim francês. Diana não andava –
desfilava. (SAMUEL:158)
Em outra passagem o narradorapresenta amaneira sofisticada de
Diana se trajar: “Sempre com vestidos claros, ressaltando a tez morena, sempre
com sapatos altos. Quase não usava joia, sempre na medida certa – pequeno
broche, ou um único anel o dedo, um colar de pérolas. E só. Às vezes, uma
fitinha no pescoço, com um rubi.” (SAMUEL: 158)
“As crônicas sociais alimentavam o mito – Diana Dartigues.
[...] ‘Diana é divina’. (SAMUEL: 157). Percebe-se uma infinidade de
demonstrações lisonjeiras para essa personagem que saída da obscuridade toma a
forma de uma estrela do expoente social amazonense. Contudo, sua importância na
trama diz respeito à Maria Caxinauá no episódio do furto de um cofre com
libras esterlinas no início da trama.
Acerca do episódio mencionado a
proprietária do cofre sempre a culpou: “Na época, ela [Caxinauá] foi amarrada a
um formigueiro e quase morreu. Mas nada confessou” (SAMUEL: 67). O
desvendamento do mistério se dá no penúltimo capítulo do romance no diálogo sobre
questões políticas de Abraão Gadelha – candidato derrotado ao governo do
Amazonas – e Benito Botelhoque escreveria matérias insidiosas sobre o governo
que estaria por vir. Naquele momento, vê-se Diana Dartigues casada com Ribamar
de Souza, eleito senador da República e suplente do mesmo. A essa altura,
Ribamar era um bem sucedido empresário em meio a falidos comerciantes, donos de
casas aviadoras, seringalistas e tantos outros que sofreram a derrocada do
monopólio da borracha no Amazonas.
Na voz do narrador:
Era
belo assistir ao casal Ribamar-Diana saindo daquele Buick branco com chofer.
Ribamar, bem mais velho, tipo de empresário, sorrindo para todos. E Diana, de
chapéu, leve sorrindo, digna, alta, magra, aristocrática, um pé, outro pé,
jovem, braço levantados para frente, ou jogados para frente com displicência,
quadris meio tortos, mas sem exagero.
[...]Mesmo
os adversários respeitavam e temiam. (SAMUEL:158)
O casal tem sua história cruzada
pela falência de Juca das Neves que acolheu “Um rapaz, vindo do interior. Um
finório educado. Está morando lá, e trabalha agora no Armazém. Chama-se Ribamar”. (SAMUEL: 115). Aquele rapaz simplório
se torna “amasio” de Diana e esta usa o dinheiro para que Ribamar realizasse o
maior negócio durante a crise do Amazonas, transformar as casasda rua Frei José
dos Inocentes em bordeis, além disso “com auxílio de Juca das Neves, modernizou
o Armazém das Novidades, passando a
representar vários produtos norte-americanos, como as máquinas de costura
Singer” (SAMUEL: 143).
Conforme a semiologia da narrativa
Diana representa a vingança e recompensa de Maria Caxinauá como forma de
retribuição dos ultrajes sofridos pela índia enquanto ama de Zequinha Bataillon
“A recompensa do serviço prestado e a vingança do prejuízo sofrido são as duas
faces da atividade retribuidora”. (BREMOND: 132). Diana é neta de Zequinha
Bataillon com Maria Caxinauáque sofreu castigos e busca vingança. Diana herdou
de sua avó o cofre com as libras esterlinas, a recompensa pelos maus-tratos recebidos
porCaxinauá quando era agregada no seringal.
Quanto ao papel de “amante”, objeto
do estudo, Diana simboliza a última ponta de uma série de mulheres que se
tornam amantes durante a extração do látex. A primeira, Maria Caxinauá foi para
Zequinha “a segunda mãe e a primeira amante”
(SAMUEL: 77).
A segunda personagem, Júlia, tem
relação com um massacre empreendido pela etnia Numa. Em busca de
capturá-los,saíram vários caçadores dentre eles João Beleza e encontraram uma
mulher com uma espécie de embrulho que escondia entre as mãos; na corrida para
esconder-se ela “caiu estendida no chão, morta pelo cano do próprio João
Beleza” (SAMUEL: 84). Na queda, deixou rolar o embrulho que João Beleza
descobriu ser uma criança e a chamou de Júlia.“João beleza tratava-a como filha.
Anos mais tarde Júlia preparava-lhe a comida, limpava o barracão, criava os
animais e os domesticava. Júlia crescia. E devia de ser extremada amante, pois João Beleza dormia sempre
com ela”. (SAMUEL: 85). Adulta, Júlia mata João Beleza com veneno de rato.
Depois do episódio ela desaparece na mata sem que ninguém mais a veja.Seria
Júlia a própria Diana? Fica a indagação.
Por fim, Diana foi amante de Ribamar antes de se casar em
cerimônia discreta. Dentre tantos personagens que não conseguem ter um bom
desfecho, Diana é a que melhor corresponde a uma narrativa com final feliz,
mesmo o narrador informando que o casal “alguns anos depois Ribamar de Souza e
Diana Dartigues estavam separados”. (SAMUEL, p:163). De qualquer forma, no
final da trama, a neta de Maria Caxinauá tem dinheiro e prestígio e, no
contexto da semiótica, ela representa a vingança e a recompensa da primeira
mulher do texto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fertilização cruzada de textos, olhares e pontos de vista
radicados numa acentuada dissolução, é parte das fronteiras estanques entre as
outras artes, sem que, necessariamente, isso signifique perda da capacidade
analítica ou de rigor crítico das mesmas.
O semiologista francês Claude
Bremond, no artigo “A lógica dos possíveis narrativos”, põe a lume a seguinte
proposição:
O
estudo semiológico da narrativa pode ser dividido em dois setores: de um lado,
a análise da técnica de narração; de outro lado, a pesquisa de leis que rejam o
universo narrado. Estas leis mesmas pertencem a dois níveis de organização: a)
eles refletem as constrições lógicas que toda série de acontecimentos ordenada
sob a forma de narrativa deve respeitar sob pena de ininteligível; b) elas
acrescentam a estas constrições, válidas para todas as narrativas, as
convenções de seu universo particular, característico de uma cultura, de uma
época, de um gênero literário, de um estilo de um narrador ou, no limite,
apenas dessa narrativa mesma.(BREMOND, 2008:114)
O romance de Rogel Samuel segue as
convenções demonstradas por Bremmond, corroborada pela condição do romancista
ser um crítico literário também. Contudo, o fato de escrever sobre espaço,
época e tema específicos regidos por idiossincrasias pouco conhecidos pelos
leitores de um modo geral particulariza a narrativa, conserva as peculiaridadesantes
descritas e fornece farto material para estudo desse gênero literário.
Obviamente que a noção de intertextualidade em Rogel Samuel
é bem clara, mesmo assim, o texto é inovador pelas várias acepções e concepções
política e cultural revelado na experiência do
Amante das Amazonas vibrante de sexo, colonização e desamor à natureza. O
estupro em Zilda é bem isso, invasão de privacidade. E o discurso necessita
tanto da presença próxima de outros(leitores) como a fabricação do mundo
(narrativa) para sempre estarmos em contato com ele.
É por esse viés que Samuel envereda mostrando
o caráter das mulheres, dá-lhes consciência crítica na construção das
personagens Maria Caxinauá, Zilda e Diana. Elas traduzem na arte dramática da
vida, a de ser mulher em Seringal no tempo de extração do látex na Amazônia. No
texto, abordam-se as situações com algum humor e pouco romantismo, e esta é uma
época em que o escritor já se assume na condição institucional da literatura na
Amazônia, imbricado na sintonia com a consciência crítica e autocrítica que
outros pares também o fizeram. A pertinência deste debate em torno das questões
apresentadas se afigura irrefutável modernidade e, sobejamente, evidencia na
literatura, a qualidade de produção criativa de um autor que se propõe ser
visto pela ótica da Crítica Literária.
Fica, contudo, o enigma:
quem seria o “amante das amazonas”? o narrador que se despede dos
leitores pedindo que não se esqueçam da história, por não mais estar vivo; ou o
próprio romancista que chama a Amazônia de “lugar fantástico”que está no fim; ou,simplesmente,
umtítulo chamativo para aguçar a curiosidade do leitor.
Referências Bibliográficas:
BRAIT, Beth. A
Personagem. 9ª. ed. São Paulo: Contexto, 2017
BREMOND, Claude. A
lógica dos possíveis narrativos. In BARTES, Roland [et.al.]. Análise
estrutural da narrativa.
Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. 5ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2019.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 17ª.
ed. José Olympio: Rio de Janeiro, 2002.
ECO, Umberto. Seis
passeios pelo bosque da ficção. Trad. HildegardFeist. São Paulo: Companhia
das Letras. 2ª. reimpressão, 1997.
_____________.Tratado
geral de Semiótica. Trad. Antônio de Pádua Danesi e Gilson Cesar Cardoso de
Souza. São Paulo: Perspectiva, 2003.
FOSTER, Edward Morgan. Aspectos
do Romance. Org Oliver Stallybrass. Trad. Sérgio Alcides. São Paulo: Globo,
4ª. ed. 1 reimpressão, 2006.
RICOEUR, Paul, Teoria
da interpretação. Trad. Artur Morão. Edições 70 LDA. Lisboa- Portugal,
1976.
_____________. Do
texto a ação. Trad. Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando. Editora RÉS,
Porto- Portugal, 1986.
_____________. Tempo
e narrativa (tomo I). Trad. Constança Marcondes Cesar – Campinas, SP:
Papirus,1994.
_____________. O
percurso do reconhecimento. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo:
Edições Loyola, 2006.
SAMUEL, Rogel. O
Amante das Amazonas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005.
Simpósio Temático:
N°:
03
Título:
Hermenêutica e Semiótica nas literaturas
Coordenadores:
Dra. Francisca de Lourdes Souza Louro,
Dra.
Auricléa Oliveira das Neves
[1] Pós-Modernismo palavra usada
pela Doutora Ana Paula Arnaut, em seu livro,Post-Modernismo
no Romance Português Contemporâneo: Fios de Ariadne - Máscaras de Proteu,diz
que: quando uma obra aborda um conjunto de obras e de problemas em boa parte
ainda em desenvolvimento.Ex: a subversão da representação, os efeitos de
multi-perspectivismo, a pluralidade dos registros e das linguagens, a
incorporação num discurso literário não raro fragmentário de discursos
outros...Almedina, 2002.
Nenhum comentário:
Postar um comentário